Portugal sabe como comunicar com surdos?


Há alguns meses fui a Coimbra, fazer mais um ajuste de som, pois estava a sentir bastante desequilíbrio entre os dois implantes cocleares e precisava de alterar o programa de ouvir música.



(Imagem ilustrativa) Paragem de autocarro autocarro // Foto: Craig Adderley - Pexels


Depois da consulta fui para uma paragem apanhar o autocarro e regressar ao centro da cidade. Enquanto esperava, apareceu um senhor a pedir informações. Vi uma senhora a tentar ajudá-lo, mas algo não batia certo. 

O senhor parecia confuso e não estava a conseguir entender o que lhe era dito. Até que ele respondeu: “Desculpe, eu sou surdo e não oiço quase nada, tenho de fazer leitura labial”.


Aproximei-me dele, mostrei um dos meus implantes e disse que também era surda. Fiz algumas perguntas, mas o meu sotaque do Algarve dificultava-lhe a leitura labial, então saquei de um caderno e comecei a escrever para perceber melhor como podia ajudá-lo.


Ele ainda não tinha feito a activação do seu implante e era a primeira vez que fazia o trajecto sozinho e de autocarro. Nas outras consultas tinha vindo de carro com familiares.


No meio disto tudo, passou o meu autocarro, mas no meio daquela confusão não me consegui ir embora e deixar o homem desamparado.


A dúvida reinava nos seus olhos e eu sabia perfeitamente que ele ainda não estava a compreender o que eu estava a dizer. Sendo implantada, desde que comecei a ouvir melhor, consigo compreender melhor os dois lados. Não só de quem não ouve, mas dos ouvintes. E agora consigo perceber as pistas visuais de quando alguém não percebe nada do que dizemos: o olhar atento e sobrancelhas carregadas, a ler os lábios ou a analisar a linguagem corporal. E sei também o quão chato é ter de repetir, que é necessário tempo e calma para comunicar quando uma pessoa surda está em dificuldades.

Mas também sei a frustração que é querermos ouvir, compreender, acompanhar certas conversas e não conseguirmos. 

Então decidir ficar, porque v
irar costas a esse senhor, era como se me visse a mim própria há anos atrás e não me ajudasse. 

E deixem que vos diga, se para alguém que não tem nenhum défice estar numa cidade nova é confuso, para quem não ouve nada é uma bela m****. A ansiedade dispara, temos de estar constantemente atentos a tudo e todos, principalmente a informação escrita e nem toda a gente tem paciência para parar e ajudar ou sabe sequer como comunicar com um surdo. É como aterrar num país estrangeiro cuja língua desconheces. 



Aquele episódio fez-me pensar no privilégio que é ter tido a ajuda e apoio da minha família e namorado da altura até fazer as activações dos implantes e só ter ido sozinha às consultas, quando me sentia mais autónoma e me sentia mais confortável com a minha "nova" audição. No caso do senhor, também não lhe faltava apoio, mas infelizmente naquele dia, ninguém o pôde acompanhar. 


Escrevi mais algumas perguntas no caderno e percebi que ele queria ir para o mesmo local que eu, então combinamos ir no mesmo autocarro. 


(Imagem ilustrativa)
Homem de casaco verde em autocarro // Foto: TimSon Foox - Pexels



Quando chegamos ao centro da cidade, ele parecia mais descontraído, porque já conhecia aquela zona e se conseguia desenrascar sozinho. E eu também fiquei mais descansada, se não o ajudasse acho que ficaria com um peso na consciência, ao ignorar aquela situação. 


PS: Leitura labial também é acessibilidade para surdos, se fizer sentido para ti desafio-te a reflectir: Se alguém surdo falasse comigo, será que iria conseguir ler-me bem os lábios?


Nem todos os surdos ou pessoas com perda auditiva são iguais, procura saber primeiro como preferem comunicar e adaptar estratégias de comunicação consoante o caso. 

😉



Fontes e Referências:

A minha memória e notas do telemóvel 😂



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2 Comentários

Inês Laborinho disse…
Gosto de te ler!
Este pôr-nos na pele dos outros, quando de repente não somos (só) nós o surdo faz-nos pensar, não é?
Quando comecei a perder audição e tive de começar a usar próteses, percebi finalmente porque é que o meu pai (que usava próteses desde os seus 50 anos, talvez, não sei bem!) estava quase sempre calado à mesa das refeições - com 5 filhos e uma mulher faladora, era realmente bem complicado para ele! E senti-me mais próxima dele, éramos um par cúmplice!
Inês
L. Chantilly disse…
Sem dúvida, Inês! Este tipo de situação é um grande "abre olhos".
Obrigada pelo teu comentário, gostei da tua partilha. Quem diria que as nossas limitações também nos podem aproximar de outras pessoas, como no teu caso que ficaste mais cúmplice do teu pai? :)